Como cobrimos o Critérium du Dauphiné na França e Suíça

Até chegar nessa foto com o campeão Jakob Fuglsang foi uma looonga jornada.

O Critérium du Dauphiné é uma das provas mais disputadas da temporada. Grandes nomes do ciclismo já venceram essa volta, como Alexander Vinoukrov, Tyler Hamilton, Lance Armstrong, Bradley Wiggins, Geraint Thomas e Alejandro Valverde. Muitos ciclistas que venceram a Dauphiné também vencem o Tour de France. Por isso andar bem aqui é tão importante.

A Dauphiné (como é mais conhecida) é uma volta francesa de uma semana que acontece nas cidades que ficam próximas da divisa entre a França e a Suíça (numa região bastante montanhosa chamada AuvergneRhôneAlpes). Ela é realizada pela mesma empresa que organiza o Rally Paris-Dakar, a Vuelta a España, Paris Nice, a Paris-Roubaix e o próprio Tour de France. Estamos falando da ASO, Amaury Sports Organization, uma das maiores organizadoras de eventos esportivos do mundo.

É impressionante a estrutura do ciclismo europeu. São muitas pessoas envolvidas tanto na organização das provas WorldTour quanto no dia-dia das equipes. Nesta foto, o holandês Niki Terpstra (ex-campeão da Paris-Roubaix e do Tour de Flanders) aquecia no rolo, pois teríamos na sequência uma etapa curta e explosiva, que demandava um bom aquecimento prévio dos atletas.

Inicialmente, a Dauphiné, como muitas outras provas europeias, foi criada por um jornal: o “Dauphiné Liberé”, em 1947, o qual foi o detentor do nome da prova até 2009, e a partir de 2010 a ASO tornou-se a organizadora “full” do evento, retirando o “Liberé” do nome, ficando apenas “Critérium du Dauphiné”.

Foi uma enorme jornada para conseguirmos a autorização da ASO para acompanhar a prova como jornalistas: Tivemos que provar à organização, ao longo de três meses do processo de “aceitação”, que éramos uma organização séria, e isso foi feito a partir de todo o trabalho que fizemos aqui no Brasil, que não seria possível sem nossa equipe, nossos leitores, que nos incentivam a continuar nessa batalha pela valorização do ciclismo no Brasil, e, principalmente, a ajuda de amigos importantes como o Leandro Bittar, a Estela Farah e o Junior Simões (Junimba) que nos deram dicas importantes que precisávamos para conseguir a autorização.

As etapas literalmente param as cidades-sede. É bem comum as empresas não terem expediente ou encerrarem mais cedo para os empregados (e o próprio patrão) poderem acompanhar o evento e as festividades. Nestas cidades acontecem, durante as etapas, feiras, quermesses e shows, tudo em um clima bastante amigável. O ciclismo compactua muito bem com o turismo local.

Além disso, como éramos os únicos brasileiros na caravana, tivemos que provar como a nossa presença na prova poderia impactar de forma positiva o público brasileiro, que ainda, em sua grande maioria, tem pouca familiaridade com algumas das maiores provas do ciclismo. Fomos muito bem recebidos pela organização e ficamos impressionados com tanta hospitalidade dos profissionais que estavam envolvidos na organização do evento.

Fizemos a cobertura sem qualquer tipo de apoio, literalmente contando os centavos e usando o período de férias no meu trabalho. Não foi fácil, mas conseguimos chegar lá!

Com a nossa aprovação pelos franceses, conseguimos carimbar a presença também no Tour de Suisse, que acontecia perto da Dauphiné, e assim foi possível encaixar as duas provas na mesma viagem. Foi uma experiência muito boa, porque depois de 20 anos acompanhando o ciclismo, ver tudo de perto é algo muito gratificante, parecia que estávamos dentro de um filme.

As famosas assinaturas de súmula são um show a parte: aqui temos a apresentação de Julian Alaphilippe, o grande astro do ciclismo francês da atualidade:

Por parte dos atletas, a Dauphiné é levada muito a sério. É perceptível no ar a seriedade e o foco das equipes, pois uma etapa vencida ali pode significar um contrato renovado, ou mesmo um bônus no salário. Mas não se engane: vencer qualquer coisa, ainda que seja uma meta volante, na Dauphiné ou no Tour de Suisse (por serem provas prévias ao Tour de France) é necessário um nível surreal.

Sentíamos em cada etapa o quanto era importante estar nessa prova e procuramos cobrir cada detalhe, seja por meio das lentes, seja por meio de um olhar atento e crítico a tudo o que estava acontecendo. Tudo passou muito rápido, mas foi o suficiente para verificar o quanto este esporte é bonito, não só pelas paisagens, mas pela humildade e perseverança dos atletas, pelo trabalho altamente profissional das equipes e pela belíssima estrutura envolvida em cada evento.

A sala de imprensa: é daqui que saem as notícias, são feitas entrevistas pós-etapa e também rola aquele café por conta da organização para que os jornalistas e fotógrafos aguentem a maratona!

A Dauphiné é altamente competitiva, com todas as equipes trazendo seus melhores ciclistas. A equipe tradicional do Cazaquistão, a Astana, levou um time fortíssimo, carimbando a segunda vitória consecutiva do vice-campeão olímpico Jakob Fuglsang na prova.

A edição de 2019 teve um formato totalmente diferente da que teremos em 2020, que será mais montanhosa e terá nada menos do que cinco chegadas ao alto. Em 2019, não tivemos tantas etapas tão montanhosas, apenas duas, mas o traçado, em sua grande maioria, é formado por estradas muito técnicas, passando por locais extremamente sinuosos.

Nosso dia era bastante corrido: na parte da manhã precisávamos nos deslocar, de trem ou ônibus, até a cidade onde seria a largada, e depois seguir com a caravana até a chegada e depois iríamos ainda para outra cidade onde iríamos dormir, lá pelas 10 da noite. Com isso, passávamos em 4 cidades por dia, para reduzir custos, pois as etapas eram em cidades pequenas e turísticas, e nós optamos por ficar em uma cidade maior que houvesse na região, em algum hostel, casa de amigo, ou Airbnb, com custos mais razoáveis.

A alimentação era oferecida pela organização aos jornalistas, o que ajudou muito a cortar os custos. Ali é possível conhecer o pessoal que cobre as etapas e faz disso a sua profissão. Os caras são verdadeiros heróis, pois é um trabalho bastante complexo, sob todas as intempéries climáticas, principalmente para os fotógrafos que andam sobre as motos em posições nada confortáveis durante horas.

Tivemos muitos contratempos nos deslocamentos, que não são nada fáceis. As localidades em que as etapas acontecem são de difícil acesso. A salvação era conseguir alguma carona ou alugar um carro: a primeira opção não era fácil, por sermos desconhecidos, e a segunda era cara e não tínhamos dinheiro…

Arriscamos alguns dias indo de transporte público, mas era insano: ou perdíamos a largada ou a chegada, pois eram vários trens e ônibus para chegar a tempo! A “salvação da lavoura” foi conseguir carona com o pessoal da Associated Press, que possuem jornalistas indo de etapa em etapa, e aí conseguimos fazer algo de mais sólido na jornada.

A Ineos venceu essa prova em várias edições desde a criação da equipe como Team Sky. Em 2019 a equipe se dividiu em duas, uma foi para o Tour de Suisse com foco em Egan Bernal (que venceu a prova) e Geraint Thomas (que caiu e abandonou a prova), e outra foi para a Dauphiné com a liderança de Chris Froome, que sofreu um terrível acidente quando um forte vento o pegou de surpresa no aquecimento para a etapa de crono. Ele estava com apenas uma mão no guidão no momento que a rajada de vento o pegou, ele caiu, fraturando o fêmur, e ficou de fora de todas as provas da temporada, inclusive do Tour.

O astro Peter Sagan em seu habitar natural: no pódio!

Ainda assim, a Ineos saiu da Dauphiné com duas importantes vitórias em etapas, com Poels vencendo a etapa rainha e Van Baarle vencendo a etapa final. Nomes que mais tarde desempenhariam importantes papéis na vitória inédita do colombiano Egan Bernal no Tour de 2019.

Vimos tudo isso de perto, o que mudou bastante a nossa forma de enxergar o ciclismo. Hoje vemos o poder transformador que o esporte possui, movimentando pessoas do mundo todo ao redor do interesse por uma atividade que traz qualidade de vida às pessoas.

Em 2020 nossos sonhos e metas foram postergados devido à pandemia, mas seguimos firme para poder estar, finalmente, no Tour de France e Jogos Olímpicos em 2021. Até lá será mais uma longa jornada, trazendo aos nossos leitores o melhor do ciclismo, além de divulgar a cultura deste esporte às pessoas que ainda não o conhecem.

Alguns outros vídeos: