Buscando a ordem em meio ao caos

Imagem de um dia qualquer no metrô paulistano (fonte: G1).

Como todo país em desenvolvimento, o Brasil precisa encontrar suas próprias formas para a resolver seus problemas mais básicos. São em tempos conturbados, como as crises econômica, ambiental e de saúde que o país passa, que emergem seus maiores defeitos. É com essa emergência, entretanto, que fica mais evidente como é preciso encontrar soluções.

O problema da mobilidade urbana brasileira tem sido atenuado em meio à pandemia de coronavírus, já que muitas organizações conseguiram manter suas atividades por meio do home office e muitas pessoas perderam seu emprego, deixando de fazer parte da massa de trabalhadores que vão e vem no trânsito. Aqueles que precisaram continuar se locomovendo encontraram os dramas de sempre, ainda que em menor dimensão em virtude da pandemia: trânsito parado, transporte público de má qualidade, riscos de segurança e tantos outros que chegam a ser inumeráveis.

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Assim como a quantidade de problemas é difícil de quantificar, também o são a enorme variedade de soluções. Seja por meio do pioneiro BRT (Bus Rapid Transit), implementado pela primeira vez em Curitiba e que hoje é uma realidade em muitas cidades do Brasil e no mundo, seja pela ampla expansão no uso de aplicativos de caronas como o Blablacar, o Waze Carpool, o Zampy (app brasileiro criado em 2015) e tantos outros que vem crescendo muito no Brasil. Sempre há formas de reduzir ou até de resolver os problemas de mobilidade urbana, a barreira central pode estar na cultura: as pessoas são “treinadas para pensar” que andar de carro é melhor do que andar de bike, andar de moto é melhor do que compartilhar uma carona, ficar horas parado no trânsito é melhor do que usar o transporte público. É essa inversão cultural que é mais difícil de ser superada do que qualquer barreira técnica.

O fato é que a maioria das cidades foram projetadas para serem percorridas a bordo de automóveis, as pessoas foram morando cada vez mais longe de onde trabalham e as leis que deveriam disciplinar esse emaranhado de problemas, ao invés disso termina por piorar a situação. São poucas cidades que realmente aplicam os diplomas legais na fiscalização das construções e uso do espaço urbano. Existe até mesmo uma profissão chamada fiscal de posturas, que busca harmonizar os direitos concorrentes no uso do espaço nas cidades, principalmente verificando se há a correta verificação das leis nas construções. Essa atuação, todavia, é ainda coibida pelos próprios gestores públicos que não querem se indispor com seus eleitores, preferindo deixar as construções em desconformidade com as normas (podendo causar desastres) e permitindo com que as calçadas, por exemplo, sejam feitas de qualquer jeito, quando feitas. Gerando graves problemas de acessibilidade.

As calçadas merecem aqui um caso a parte, pois ainda são responsabilidade dos moradores, ao contrário das ruas, apesar de ambas desempenharem a mesma função: deslocamento de pessoas. Falta uma harmonização não só nos direitos, mas também nas obrigações, e principalmente nas obrigações do poder público! É um fato amplamente reconhecido que calçadas amplas e de qualidade aumentam a tendência das pessoas a transitarem a pé. As normas brasileiras permitem a largura mínima de 1,2m, então a maioria das construtoras usam essa margem ao limite, esquecendo-se que esse é o mínimo, tornando-o em máximo executável.

A má qualidade das calçadas e ruas choca-se com a ideia de acessibilidade, por mais que o Brasil tenha assinado a convenção de Nova Iorque e instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), suas determinações ainda são pouco respeitadas, principalmente em vias, espaços públicos e locais de grande circulação. São exemplos diários divulgados pela mídia de desrespeito às pessoas com deficiência. Bastaria aplicar a lei.

Aumento na demanda por bicicletas não faz com que mais pessoas vão de bike para o trabalho

Segundo a Abraciclo (Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares), em 2020 as vendas de bicicleta aumentaram 118%, mas isso não tem feito com que as pessoas usassem essa bicicleta adquirida para ir trabalhar, possivelmente pelos problemas enumerados acima e também de acordo com nossa pesquisa relacionada abaixo, resumindo: vias deterioradas ou de má qualidade, falta de segurança (roubos e acidentes) e ausência de uma estrutura mínima nos locais de trabalho/espaço público, como um local para deixar a bike e um banheiro com chuveiro, são os impedimentos mais lembrados pelos ciclistas.

“Não é apenas pegar a bike e ir trabalhar, há uma estrutura envolvida, e uma cultura, tanto do poder público que não estimula, quanto das pessoas que se vêem na situação inconveniente de querer mudar, mas não ter um respaldo para conseguir adquirir novos hábitos”, disse Beto Sguissardi, que usa sua bike para trabalhar em São Carlos, interior de São Paulo.

Em países desenvolvidos, por exemplo, é comum colocar a bike pendurada do lado de fora do ônibus ou dentro do trem, eu mesmo fazia isso quando morei em San Diego, na Califórnia, algo impensável por aqui onde moro, em Ribeirão Preto, estado de São Paulo. Além disso, a falta de uma malha de ciclovias impede o uso deste dispositivo de trânsito. As ciclovias existem em muitas cidades brasileiras, mas são descontínuas, fazendo com que os ciclistas tenham de transitar na maior parte do tempo em meio aos automóveis e caminhões.

Em Brasília, por exemplo, é praticamente impossível andar de bike nas ruas dominadas pelos carros em alta velocidade, segundo Marcelo Goes, do blog Camisa Amarela que morou e pedalou por muitos anos no Distrito Federal. Marcelo mora em Maringá, no estado do Paraná, cidade com grande quantidade de ciclistas, mas com ciclovias pouco ramificadas. “A ciclovia começa do nada e logo já termina, precisamos andar um longo trecho entre os carros e caminhões até encontrar outro trecho da ciclovia”, conta Marcelo. Essa convivência de carros, caminhões e bikes em trechos sem acostamento e de alta velocidade aumenta o risco de acidentes fatais. E a probabilidade de acidentes  coíbe ainda mais uma mudança comportamental na mobilidade destas cidades.

Isto nos faz entender que a mobilidade urbana é um problema que não pode ser resolvido de forma simples e sem o estímulo do poder público. É preciso uma ação conjunta entre os diversos atores: associações de ciclistas, governo e órgãos de trânsito, por exemplo, possuem visões diferentes sobre o trânsito e isso faz com que as soluções para uns, sejam problemas para outros. É comum “cobrir um santo e descobrir o outro”.

Em inglês a palavra “commute” traz a ideia de deslocamentos habituais. Ela representa o nosso vai e vem, ou seja, o tempo que passamos entre momentos de “qualidade”, ou seja, são as “entrelinhas do tempo” que nos impede de fazer algo produtivo. Em economia temos o conceito de custo de oportunidade, que representa a medição do que deixamos de ganhar. Neste sentido, o commute é o custo de oportunidade entre produzir algo ou  ficar no trânsito. Para um ciclista, todavia, este tempo em deslocamento pode significar um momento de reflexão ou um momento de cuidado com a saúde, já que o commute de bike também é atividade física.

Com tantas dificuldades, a escolha óbvia das empresas e dos trabalhadores é pelo home office, que faz com que o contato humano seja trocado pela atenuação do custo de oportunidade. É um “trade off“, isto é, uma compensação. Deixamos de ganhar a troca de experiências reais ficando em casa, gerando menos custos, mas evitando também aquilo que nos faz humanos: o contato. Com ônus e com bônus, todavia, esta deve ser a regra nas próximas décadas, só precisamos encontrar o equilíbrio para um home office saudável e produtivo, profissionalmente e mentalmente.

O “brainstormig” da mobilidade!

Para nortear este artigo, fizemos uma pesquisa com nossos leitores e parceiros para encontrar soluções para melhorar a mobilidade urbana nas cidades brasileiras por meio de um” brainstormig.” Ao final do texto trago algumas das ideias deixadas. Elas podem servir como um norte a ser seguido em meio a essa organização do caos.

Na pesquisa conseguimos descobrir informações interessantes como: por pior que seja a qualidade do transporte público, ainda é a lentidão e a perda de tempo características deste transporte que força as pessoas a fugir dele. As pessoas consultadas apontaram para a falta de local para tomar banho e a falta de costume como primordiais na declinação ao uso da bicicleta como meio de transporte, ainda que tenham apontado por transitarem em vias com baixa qualidade e com pouca segurança.

O baixo incentivo do poder público para o uso de transportes mais sustentáveis foi primordial para os pesquisados que também indicaram que a presença do governo é importante para a efetivação de melhorias na mobilidade urbana. Não é a toa que com uma mistura de seleções adversas como estas, a saída tenha sido o home office, já que se mover se tornou impossível nas cidades brasileiras, especialmente nas de médio e grande porte.

Boa parte do transporte público ainda funciona com regime de ausência de concorrência: se uma empresa vence uma licitação para oferecer transporte de ônibus ou trem em um determinado trecho, nenhuma outra empresa pode oferecer aquele serviço. Desta forma, a lógica da empresa que venceu a licitação visa apenas reduzir custos para maximizar lucros, deixando a satisfação dos usuários em segundo plano. Os usuários, por sua vez, pouco podem fazer, já que não há outra empresa que possa oferecer o serviço. Com isso, a exclusividade no transporte público no Brasil (assim como em tantos outros serviços públicos) leva à baixa qualidade na prestação de serviços como uma consequência lógica.

Neste aspecto, apenas para efeito de comparação, em países desenvolvidos como a Inglaterra, é possível até mesmo escolher a empresa que oferece o serviço de água e esgoto, e também de luz, e aqui ficamos reféns das mesmas empresas que não conseguem entregar um transporte público de qualidade.

Ideias apontadas por nossos leitores e parceiros consultados na pesquisa:

  1. Direcionamento de recursos através do incentivo a obras (de mobilidade urbana) subsidiadas pela iniciativa privada com consequente diminuição ou isenção de impostos federais e/ou municipais;
  2. Um maior incentivo ao uso do transporte público. Culturalmente, o uso de bicicleta no Brasil não é priorizado (precisa de mais incentivo);
  3. Poder público precisa enxergar a bicicleta como solução para mobilidade urbana, e não como um problema, e agir de acordo. Esse é também um problema cultural, pois o brasileiro costuma ver a bicicleta como sinal de pobreza ou de marginalidade, como uma opção de mobilidade inferior ao carro. 
  4. Adoção de parâmetros nacionais para mobilidade e acesso a financiamento (filtrar a destinação de recursos apenas para entes que cumprirem certos requisitos de mobilidade urbana, como a quantidade de ciclovias e qualidade das vias);
  5. Priorizar o transporte público e expandir a malha cicloviária conectando com bicicletários em todas as estações de trem, metrô e terminaria de ônibus;
  6. Transporte público poderia ter maior capilaridade e qualidade (por meio da atenuação do mecanismo de exclusividade na prestação, por exemplo);
  7. As metrópoles brasileiras precisam primeiro educar o cidadão para compartilhar, respeitar e usufruir do transporte público e mobilidade com qualidade;
  8. As Prefeituras terem seu corpo técnico atentos aos novos paradigmas técnicos, econômicos e sociais (capacitação dos profissionais). Estamos querendo fazer o que os bons exemplos do mundo estão desfazendo! Simples assim!
  9. Políticos focados em resolver os problemas da cidade;
  10. Melhorias no tráfego, incentivo ao uso de bicicleta com construção de ciclovias ou fechamento de ruas para carros, melhoria por parte do governo nos transportes públicos;
  11. Morando em São Paulo por 5 anos, eu faço questão de MORAR do lado do trabalho para não gastar tempo e energia com trânsito. Sempre vou a pé e pego Uber / transporte público para compromissos pontuais; (ampliação e incentivo no uso dos aplicativos inteligentes)
  12. Projetos de bicicletas comunitárias com pontos fixos estratégicos, principalmente próximos de pontos de ônibus. Mais ciclovias e ciclofaixas;
  13. Incentivo e investimento no uso de bicicletas. Ampliar as ciclovias, manter elas mais seguras e criar politicas para as empresas auxiliarem no transporte por bike (lugar para banho, descontos, etc…);
  14. Investimento no transporte público (qualidade do serviço prestado e tarifa), expansão de ciclovias;
  15. Estímulo do poder público ao uso de bicicletas e pequenos veículos elétricos.

Participaram da pesquisa pessoas das cidades do Rio de Janeiro/RJ, Goiânia/GO, Brasília/DF, Recife/PE, Maringá e Londrina/PR, Belo Horizonte/MG, e das cidades do Estado de São Paulo: Campinas, Ibitinga, Guará, Araraquara, Ituverava, Itapetininga, São Carlos, Ribeirão Pires, Ribeirão Preto e São Joaquim da Barra, além de São Paulo, capital.

Conclusão

Este artigo buscou levantar ideias que podem ser utilizadas pelos gestores públicos e privados para melhorar a mobilidade nas cidades brasileiras. Toda mudança passa por uma barreira cultural e de transição e é neste momento que estamos. Precisamos REPENSAR a forma com que queremos que as cidades funcionem, para os problemas atuais não se tornem piores no futuro.

Sabemos que as cidades e comunidades em países em desenvolvimento possuem recursos e planejamento limitados, mas isso não pode impedir a busca por soluções. O caso do BRT e dos aplicativos de caronas compartilhadas mostra que nem sempre as ideias só são implementadas com rios de dinheiro. Muitas vezes a maior barreia seja no incentivo à mudança e na mudança cultural em si.

Por fim, os desastres naturais advindos do aquecimento global tenderão a testar a resiliência das cidades mais do que nunca, de modo que as soluções que levantamos aqui sejam apenas prelúdios das necessidades gigantescas do futuro.

O futuro é agora!

 

Este artigo teve a colaboração dos blogs: Camisa Amarela e  Pelote.

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